Um dos maiores experimentos descentralizados do ecossistema Web3, a Nouns DAO, tem sido o foco das atenções nas últimas semanas devido a um fork, ou seja, uma divisão de seu protocolo e de sua comunidade em dois caminhos separados.
Apesar das DAOs serem consideradas para muitos o modelo ideal de governança, na prática elas também se resumem a relações políticas e conflitos de interesses entre os membros. Isso causa dificuldades organizacionais na medida em que o tamanho da sua comunidade cresce e começa a divergir em suas visões.
Foi justamente esse o ponto que fez com que parte dos membros da Nouns tomasse a decisão mais extrema que um protocolo descentralizado pode tomar: uma divergência de visões a respeito de como utilizar os fundos milionários de seu tesouro e a falta de certos mecanismos organizacionais que permitissem mais personalização e proteção dos membros. Se por um lado os forks podem enfraquecer a coordenação e o poder da marca; por outro, podem fomentar a competitividade e, consequentemente, trazer mais inovação e progresso ao ecossistema.
Nesta edição de fechamento semanal da Morning Jog, vamos entender o que é a Nouns e o que realmente levou uma das maiores referências e uma das DAOs mais bem capitalizadas do universo cripto chegar a esse ponto.
O que é a Nouns
A Nouns é uma comunidade descentralizada construída a partir de um projeto NFT com características únicas em relação aos demais. Ela é conhecida por seus óculos (⌐◨-◨), único acessório presente em todos os itens da coleção. A DAO tem sua marca classificada sob a licença Creative Commons, ou CC0, o que significa que é de domínio público e acessível para qualquer pessoa utilizar para qualquer finalidade.
Seu principal diferencial em relação a outras coleções de NFT é seu modelo inovador de funcionamento: um novo NFT é emitido todos os dias, de forma randômica, para sempre. Assim que é emitido, o item é automaticamente colocado em um leilão aberto e aquele que der o maior lance ao final do tempo fica com o item.
Imagem 1 – A cada dia, um novo Noun surge
O projeto atingiu uma dimensão tão significativa que a média de preço em que cada leilão diário é finalizado varia entre 29 ETH e 35 ETH. Esses recursos vão diretamente para o tesouro da DAO do projeto, controlada pelos próprios holders da coleção, em uma proporção de 1 voto para cada NFT existente.
Os holders podem submeter propostas e, em conjunto, tomar decisões sobre como utilizar esse tesouro milionário, que até o momento do fork, contava com aproximadamente 30 mil ETH (equivalente a quase US$ 50 milhões, na cotação atual). Algumas iniciativas já realizadas incluíram os exames necessários e a distribuição de 3 mil óculos de grau para crianças de uma escola em Ohio, nos Estados Unidos, a criação de sua própria loja online com diversos itens da marca, o financiamento de sub comunidades nichadas como GnarsDAO (voltada para esportes) e a NounsBR (voltada para o público brasileiro), e até mesmo uma aparição no comercial da Bud Light no Super Bowl de 2022.
Os motivos do fork
O problema surgiu quando a própria comunidade se dividiu em diferentes visões sobre como utilizar os recursos milionários do tesouro. Enquanto alguns acreditavam que o objetivo do tesouro era apenas “difundir o meme”, criando iniciativas para que a marca Nouns ganhasse escala global sem necessariamente esperar algum retorno financeiro sobre o investimento, outros acreditavam que os investimentos deveriam ter como objetivo maximizar o tesouro do projeto, acumulando cada vez mais recursos sem depender exclusivamente dos novos leilões de NFTs como uma fonte de receita.
Essas linhas de pensamento são respectivamente classificadas como “meme value” (os que apenas querem difundir a marca Nouns) e “book value” (os que esperam que os investimentos gerem retornos financeiros). Foram elas que entraram em conflito.
Isso se somou ao fato de que a DAO começou a atrair a atenção de arbitradores (traders que buscam lucrar com a diferença da compra e venda de um certo ativo). Eles notaram que a quantia total em tesouro dividido pela quantidade de NFTs existentes era de 35,5 ETH, superior ao valor que os novos NFTs estavam sendo leiloados (entre 29 e 35 ETH). Devido à impossibilidade de resgatar sua parte proporcional do tesouro e sair da DAO (prática conhecida como rage quit), a alternativa disponível para o grupo de “book value” era por meio de um fork. Essa ação pode ser proposta por qualquer holder e executada de forma nativa com o apoio de pelo menos 20% do total dos votos, sendo realizada por meio do próprio site oficial do projeto. Essa possibilidade foi implementada no início de 2023, por meio de uma atualização do protocolo.
Também é importante mencionar que isso difere de outros casos de fork no universo cripto, como os que a própria rede Ethereum passou (DAO hack, em 2017, e The Merge, em 2022), nos quais o fork não era um recurso nativo disponibilizado pela própria solução.
Imagem 2- Qualquer holder pode abrir uma proposta de fork na Nouns
Fonte: nouns.wtf/fork
Características do fork
O fork ocorrido foi proposto por um dos membros da comunidade e foi finalizado no último dia 15 de setembro com o apoio de 472 holders. Isso representa 56% do total de donos de NFTs da coleção (ao total, eram 846 NFTs no momento). Ou seja, a proposta obteve bem mais do que os 20% necessários para sua aprovação.
Um dos principais motivos para a aceitação da proposta do fork foi a inclusão de algumas funcionalidades em sua segunda versão, como a opção de “rage quit” (devolução do NFT em troca do percentual equivalente do tesouro) e a ausência de recompensas para os fundadores da coleção, que sempre receberam 1 a cada 10 dos novos Nouns emitidos. Dos 16,7 mil ETH transferidos para a versão do fork, atualmente restam “apenas” 6,2 mil ETH, seis dias após a finalização da proposta. Isso comprova que a prática de “rage quit” foi um dos principais motivos para a adesão de parte dos usuários.
Outro ponto interessante é que, em vez de todos os holders da coleção terem seus NFTs duplicados, presentes nas duas versões da NounsDAO (assim como todos os holders de ETH ficaram com quantias de ETH e ETH Classic, por exemplo), os holders da coleção precisaram escolher apenas uma das duas versões para manter seu NFT. Aqueles que aderiram à proposta do fork precisaram abrir mão dos mesmos na versão original, que foram para o tesouro da DAO, em troca de receberem um novo NFT idêntico, emitido pela versão originada pelo fork.
E, por fim, como a marca Nouns é de domínio público (CC0), não existe nenhum direito de propriedade de uma das versões perante a marca, de forma que, apesar da divisão de governança e de tesouro, as duas versões ainda englobam o mesmo guarda-chuva de identidade.
O futuro da marca
A principal questão a partir de agora é como se dará a relação entre as duas organizações. Ambas serão consideradas “oficiais” ou uma delas irá se sobressair em relação a outra? A relação entre elas será colaborativa ou competitiva?
Suas diferenças, até o momento, ocorrem apenas a nível de protocolo (remoção das recompensas dos fundadores, implementação da função de rage quit, etc.). No entanto, no futuro, nada impede que seja implementada em uma delas alguma mudança de identidade, como uma mudança da frequência de emissão e/ou dos atributos físicos dos novos NFTs gerados, da cor vermelha dos óculos originais ou alguma outra característica. Isso pode fazer com que uma das versões se sobressaia sobre a outra, impactando na demanda futura dos novos itens postos a leilão e consolidando um consenso social sobre qual das duas é a versão “principal”.
Esta é apenas mais uma etapa desse grande experimento social que a Nouns representa. Agora, com uma comunidade mais nichada e com incertezas a respeito de como a relação entre elas vai se desenrolar, ainda não podemos afirmar com certeza se o fork foi positivo ou negativo para o futuro da marca como um todo. Mas podemos apontar que muitos outros capítulos ainda estão por vir.
Fonte: Morning Jog